Se a linguagem do desenho, ao longo da História da Arte, é vinculada a uma função e um lugar de rascunho, projeto ou esboço, vemos, a partir do Modernismo até a Arte Contemporânea, essa modalidade afirmar sua autonomia e crescimento de maneira independente dentro do contexto das artes visuais. Mais que uma linguagem cujas características técnicas e estéticas são reconhecíveis, a intenção na discussão acerca da sua essência traz um pensamento em desenho: sua presença gráfica ou imaginada, seu caráter imagético ou projetivo – o que defende a concepção de que todos nós (e nosso entorno) estamos desenhando o tempo todo, de alguma maneira ou de outra. É sempre bom lembrar, aliás, que talvez essa prática seja a mais democrática e acessível das artes visuais – uma vez que rabiscar um pedaço de papel, exercitar uma caligrafia ou ilustrar um esquema, por exemplo, são atividades já executadas por todos nós ao longo de nossas vidas.
Júnior Suci, Laura Lydia e Thais Ueda lançam mão dessa linguagem em seus processos de produção artística, apresentando trabalhos que colocam o desenho neste espaço de obra autônoma; no entanto, a presente proposta faz explícito o pensamento em desenho no que tradicionalmente poderia ser chamado de “outros espaços e linguagens”: grifam, assim, o que pode ser desenho no cotidiano, através de fronteiras borradas entre “categorias”, assim como evidenciam a resistência dessa linguagem no espaço humano e da arte.
Na presente mostra, Suci registra em vídeo, fotos, impressões e desenhos essa persistência através dos gestos do corpo, ora explícita ora implícita, e das ações dos objetos sobre o corpo ou outro objeto. Levanta a questão de um desenho em potencial nas ações e elementos do cotidiano. Um desenho de ação – ou uma ação de desenho. Lydia e Ueda valem-se do espaço ao entorno para trazer à tona a resistência dessa modalidade. A primeira, por meio do desenho que se inicia cotidianamente na paisagem urbana pela ação do movimento do solo sob seus pavimentos, rasgando-os insistentemente, criando grafismos que sugerem ramificações fluídas e infinitas, bem como fragmentos maciços que se rompem para o dimensional. Essas linhas contínuas então desenhadas pelo olhar, percorrem o papel e o nanquim, como o ato caminhante na própria cidade. Desenho que ressignifica os percursos e as linhas vivas que, como o corpo, recriam caminhos, atalhos, conexões infindáveis. A segunda, pelas “tentativas” de apagamento de pichações na cidade de São Paulo por meio de registros fotográficos (tentativas, pois a camada que pretende esconder esses grafismos assume papel de revelação: o que era pra apagar se revela como um novo desenho). E as estruturas urbanas, como suporte dos desenhos caligráficos típicos da pichação, são, nas mãos da artista, reproduzidas em grafite no suporte do papel. É o desenho do desenho do suporte, a reprodução operante de camadas incessantes de informações e da demarcação de território. Desenho in continuum na simbiose entre (des)contextualização e (re)produção.
Assim, o desenho emerge, no conjunto de trabalhos, resistente – ao longo da história da arte e da história do próprio mundo – em ocasiões de encontro e desencontro, de força e fragilidade, de presença e ausência – destacando-se (a despeito das dicotomias dos espaços em que ele pode habitar) como aquele que insiste novamente.
Texto integrante da mostra O Desenho que Está [ Insistente, Novamente ] por Junior Suci, Laura Lydia e Thais ueda